Narrativa a meias (Parte II)
É hora de partir. Alcatrão, noite, o vento e o andamento... lembras-te? Noutra era partimos em silêncio. A sinergia tinha cor na cumplicidade das palavras que não dissemos. Guardamo-las bem dentro de nós para deixar os outros sentidos usufruir. Partimos... deste-me uma maçã para a mordiscar, achaste que eu estaria mal nutrido, tinhas razão. Vendaste-me os olhos dizendo-me para não olhar e abriste a tua mochila: disseste que seria surpresa, e que não me irias confessar porque teria que adivinhar. Soube que seria um cd, a nossa primeira banda sonora, e sim... ouvi-te a ligar o leitor, e disseste-me: vamos esperar pelo adeus à cidade, até não alcançarmos as luzes com a nossa visão. Depois, faço play. Estavas tão calma, acabada de acordar, assim como quando sabemos que o início é lento por sabermos que o fim é muito longe. Não és uma pessoa de inventar conversa, leio-te nos olhos. E tudo o que deixas no ar é sempre circunscrito de forma concisa. Dá-te a sensação de um belo escudo de segurança e marca a primeira grande diferença entre nós: porque no caminho da nossa insegurança, modelamos diferentes formas de reagir. Já não alcanço a última luz da cidade, digo-te sussurrando...
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Desta vez queria roubar-te o volante e carregar eu no acelerador. Admito que o mais certo seria irmos parar a parte incerta, mas perdidos já estamos há muito. Pior seria apanharmos alguma árvore mais incauta pelo caminho.
Na mochila trago os pensamentos dos outros diluídos como limonada para quando tivermos sede. Sim, sei que sou preguiçosa. Tomei os pensamentos dos outros como meus no bocejo da madrugada mal dormida. E encosto-me como faço sempre que encontro o banco do teu carro. Não preciso de fingir ser interessante. Limito-me a ser o que sou, seja isso pouco ou nada. Uma fonte de sensações auditivas. Ou algo parecido, como me disseste um dia.
Pisco-te o olho e carrego no play.
Os faróis serão trocados em breve pelo sol. Às vezes, parece que espreita entre as nuvens e nos observa, paternal. Ouvimos a banda-sonora do nada e revemos-nos nela como frente a um espelho. O sol surge nos nossos olhos habituados à sombra. Apressamo-nos a esconder-nos dele. Não, agora não. Ainda não estamos preparados para a tua magnânime visita. Não é nada de pessoal, apenas muito tempo na escuridão.
(a continuar)
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