quinta-feira, março 9

Começo eu? (narrativa a meias) - Parte I -

Ouvi dizer que querias vir buscar-me no teu carro branco para percorrermos mais umas tiras de alcatrão. Vamos, sim. Aproveitemos que é fim-de-semana e vamos. Vou só arrumar umas peças de roupa e uns discos à pressa e, depois, à primeira buzinadela saio.
Mordisco uma maçã e espreito pela janela. Uns faróis iluminam o chão molhado.
Visto o casaco, pego na mochila. Sei que és tu. Quem mais seria a esta hora?

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Ainda durmo desconfortado sem atalho para fugir deste frio. Durmo há horas, horas perdidas do passado que me viram adormecer lentamente para o dia de hoje, qual o esgotamento que tantos já viram acontecer ao vizinho, ao amigo, amante ou semelhante. São horas do nada para acontecer, horas perdidas aos beijos com um coração perdido. E quando acordar, vou saber que nos últimos dois dias tu esperaste pelo som da buzina do meu carro todo branco que dispara faíscas de rock and roll contra o vento da sobriedade. Um fim de semana de fuga contra todas as fugas, seria uma bela meta para nós... acreditássemos nós no destino e saberíamos que as metas são regras. Mas nós, nós morreríamos antes do destino só para contrariar, e se hoje dizem ser domingo, por hoje eu quero-te dizer que hoje eu vou-te buscar.

Não sei se por aqui haverá água para limpar os olhos remelados do sono, apetecia-me ver-te de cara lavada, de te apanhar de surpresa, a ponto de descobrires algo em mim que até hoje não tenhas visto. Mas não me lembro de saber onde estou, está escuro, e não tenho relógio, falta-me música, e é assim que eu acordo. Coloco a 1ª mudança indisponível no telemóvel, arranco sem saber a tua morada, nunca soube... quando te sentir perto, buzino sem a noção de que não serão horas para incomodar as pessoas. A buzina saberá chamar-te pelo teu nome e na hora de fechares a tua porta já no lado de cá, vou reclamar pelo 1º sorriso à distância. As nuvens carregam lágrimas e os pneus receiam o nervosismo de uma travagem mais a medo... digo-te que adoro andar à chuva, porque há algo de calor nestas solitárias gotas destiladas. Digo-te coisas que não digo e quero-te perto de mim. Ali vens tu...

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Não eras tu. Voltei a entrar em casa salpicada de gotas. Começou a chover e parece que não vai parar tão cedo. Não vens hoje. Nem sei se chegarás um dia destes.
Vou para debaixo da manta e ligo a televisão. A luz do televisor fere-me a vista. Carrego no botão vermelho de olhos fechados. Escuridão.
Algures na noite, chega o som de uma música. You can never get lost when you've nowhere to go. Poderia ser um dos teus discos a girar no leitor do carro branco. Mas não é. Não vens. Estavas com sono e paraste à beira da estrada. Deixaste-te dormir enquanto a melodia ecoava no silêncio alcatroado.
Levo-te um pouco da minha manta. O calor da lã embalar-te-á os sonhos. Eu tapo-te os ombros e sopro-te um "bons sonhos".
Descansa.
Renuncio ao plano por mais algumas horas. Amanhã ainda dá tempo.
A mochila fica ali ao canto para quando te decidas a vir buscar-me. Eu espero.

Acordo sobressaltada. O som de uma buzina. Não. Não é. É o barulho de uns pneus a resvalar na terra molhada. Parece que ainda chove. Que horas serão? Não fico para responder pois percebo agora que chegaste. Apresso-me.
Queria lavar a cara antes de te ver, mas parece que não há água neste local. Ou então sou eu que no sono não encontro a torneira.
Vou. Não quero fazer-te esperar.

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Os dias são coisas ruins, pensei para mim durante quase toda a minha vida. O que resta fora desse quase são coisas de sonhos, ou então coisas que acontecem mas não chegamos a perceber. Enquanto te vejo andar, passa pela mente um milhão de pensamentos que navegam entre conjecturas, desejos, e muita raiva... e a raiva consome-nos porque a causa principal tem o nosso nome escrito. Podia dizer que ainda sonho, e que estas palavras são raciocionadas de olhos a dormitar num sono profundo, podemos dizer tanta coisa porque sabemos que são coisas que não dizemos, palavras soltas onde tudo é dito pelo silêncio intransmitível.

Reclamo-te um sorriso, e irei saber corresponder com tudo o que sei dar, com a alegria de te estar a ver, selado no meu único sorriso que conheço encaixado numa só palavra: saudade. O carro branco saúda-te, o leitor ilumina-se, o cinto que te vai segurar sorri. Tudo o que tenho te espera, e tu lá ao longe contemplas e caminhas os teus passos.

É hora de partir. Alcatrão, noite, o vento e o andamento... lembras-te? Noutra era partimos em silêncio. A sinergia tinha cor na cumplicidade das palavras que não dissemos. Guardamo-las bem dentro de nós para deixar os outros sentidos usufruir. Partimos... deste-me uma maçã para a mordiscar, achaste que eu estaria mal nutrido, tinhas razão. Vendaste-me os olhos dizendo-me para não olhar e abriste a tua mochila: disseste que seria surpresa, e que não me irias confessar porque teria que adivinhar. Soube que seria um cd, a nossa primeira banda sonora, e sim... ouvi-te a ligar o leitor, e disseste-me: vamos esperar pelo adeus à cidade, até não alcançarmos as luzes com a nossa visão. Depois, faço play. Estavas tão calma, acabada de acordar, assim como quando sabemos que o início é lento por sabermos que o fim é muito longe. Não és uma pessoa de inventar conversa, leio-te nos olhos. E tudo o que deixas no ar é sempre circunscrito de forma concisa. Dá-te a sensação de um belo escudo de segurança e marca a primeira grande diferença entre nós: porque no caminho da nossa insegurança, modelamos diferentes formas de reagir. Já não alcanço a última luz da cidade, digo-te sussurrando...

(a continuar)

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